Cicatriz é um romance que explora aspectos da nossa contemporaneidade que muitos narradores da geração de Mesa olham de cima, mais preocupados em elaborar textos que não arriscam nada, amparando-se na repetição de antigas fórmulas obsoletas, como se o mundo não tivesse mudado em décadas. Mesa, por outro lado, constrói uma narrativa que permite questionar o mundo presente. Elabora ficções que aprofundam nas obsessões e preocupações do homem atual, e na sociedade da qual faz parte. Universos literários onde palavras como consumo, poder ou fetichismo se tornaram parte importante da vida cotidiana. Acaso fenômenos como a Internet ou a hegemonia indiscutível do capitalismo não mudaram o mundo? Sim, mudaram. O desafio assumido por Mesa foi o de representar na ficção como essas alterações afetam o indivíduo comum. A maneira como altera sua forma de se relacionar e pensar com seus pares, além dos males que derivam dessas novas conexões. As novas formas de poder que operam em nosso inconsciente. Formas de poder econômico.
Desvendar o capitalismo de hoje vai além de mencionar algumas multinacionais. Implica uma forma de pensar que pode ser rastreada até os textos de Adam Smith de alguns séculos atrás. Em A teoria dos sentimentos morais, já se vislumbrava esse mundo onde a individualidade e o egoísmo presentes em sua ideia de simpatia inerente ao homem assumiriam uma relevância cada vez maior, ao ponto de se transformar na pedra angular sobre a qual baseamos as decisões que tomamos dia a dia, sempre nos perguntando qual será o benefício líquido de nossos atos e, só então, como eles afetarão os outros. As ações não revelam todas as intenções de quem as realiza. Ou pelo menos existe a dúvida de que assim seja. A desconfiança é um mecanismo de defesa que surge naturalmente como consequência.
Em Cicatriz, a internet também tem um papel proeminente. É a rede onde nasce o elo entre os dois protagonistas, Sonia e Knut. O espaço onde Sonia acaba buscando uma forma de escapar do árduo cotidiano. Mas além do entretenimento, a internet acaba formando uma comunidade à qual Sonia adere. Pessoas que encontram um refúgio pelas infinitas possibilidades de reinvenção que lhes são permitidas. Uma rede onde a falsidade e o engano são moedas correntes, oferecendo a possibilidade de projetar anseios e desejos subterrâneos que de outra forma não poderiam se manifestar. O anonimato é a chave de tudo isso, desumanizando e fazendo com que se duvide entre o que é real e o que é fictício. E não só isso, mas as fronteiras entre o público e o privado se borrão. Até que ponto somos conscientes de que temos apenas um controle aparente sobre o que mostramos? Ainda nos pertence o que compartilhamos nas redes sociais?
E é o personagem de Knut que, com suas mensagens, vai deixando estas ideias soltas. Rompe com a monotonia para a qual a vida de Sonia foi se encaminhando. Primeiro se apresentando como alguém inofensivo, a quem ela conhece em um fórum literário e a quem confia, para acabar se tornando o principal responsável pelas dúvidas que começam a assombrá-la. Dúvidas que começam quando ele começa a presenteá-la com objetos roubados em troca dela continuar lhe dando atenção. Isso é determinante, pois Sonia, ao responder a Knut, o faz existir no sentido de que ela deve estar imaginando-o continuamente. Os objetos que chegam à casa de Sonia são apenas o preço que Knut paga para que o personagem que ele representa para ela não desapareça. As roupas, livros e perfumes roubados são os bens com os quais Knut vai ganhando poder sobre ela, fazendo gradualmente com que estes concentrem toda a atenção de Sonia e se tornem o ponto central ao redor do qual gira sua atenção diária, até mesmo destruindo os relacionamentos que ela estabelece com outras pessoas. O curioso é que esses bens não são originalmente propriedade de Knut. Ele apenas faz com que eles mudem de dono, ganhando poder no processo.
Dessa forma, o poder é conquistado pelo comércio dos bens e recai sobre quem os distribui, não sobre quem os produz. Knut se torna então a única figura de autoridade na vida de Sonia, aquele que move os fios de seus atos. Voltam os ecos do controle total, que Mesa já havia explorado em Quatro por quatro, apenas que agora a relação com as forças do comércio e das finanças fica mais clara, aqueles mundos que a maioria das sociedades desconhece como realmente funcionam, mas que acabam controlando aspectos importantes de suas vidas.
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